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Caderno de Travessias
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A poesia
A poesia é um brotar-se para dentro. Nasce para descalar almas, para tirar dos vazios os inteiriços. Urgir os nossos sentimentos de mundo. Tornar pungente as crianças da gente. A poesia... A poesia está no ar, no farfalhar do vento, na brisa da flor, na onda do mar, no aroma do chá, no cântico sincero dos pássaros, na manhã de domingo, na eternidade do presente. A poesia... A poesia é esse silêncio que grita, se germina da raiz do poeta, de seu silêncio mais profundo...
Gabriel Gama
Ofício
O que há de magnífico na natureza é essa fluidez crua que lhe intimiza. Como se vê na água. Queria eu guardar a experiência da água. Veja só. Ser acariciada pelas pedras, amada pelas doces bocas dos peixes, e, na primeira queda, dançar as curvas do vento. Ser água é viver ladeando margens, numa completa disritmia, como uma escrita irresponsável, tarefa de inundar margens...
Gabriel Gama


Os rios
Os rios descascam nossas peles. Ensinam por calma. Estão sempre a continuar com as coisas nunca sendo iguais. Não existe pressa dentro de um rio. Pressa é uma definição humana, como as metas, as certezas e as ansiedades. A gente cria dentro da gente. Na natureza, as coisas acontecem à espera, pela faculdade de escutar. Não se vê expectativa em rios, e pedras e beiras...
Gabriel Gama


Com tempo há
Tomei-me de um insustentável desejo de parar o tempo. Sobre terras longínquas e desconhecidas, vagueio em mistérios futuros, fecundando os pedaços de mim, em busca da vasta plenitude do ser. Sem culpa, sem medo, ando à flor da pele para não queimar a própria pele. Hoje, me perdi por fora todo o dia para não me perder por dentro todos os dias...
Gabriel Gama
Da vida entre nós
Podemos refletir o que fizemos, contemplar os nossos caminhos, tortuosos ou precisos, contemplar os nossos acertos, por que não, até os nossos erros. Podemos projetar o vir a ser, o que sonhamos de nós, o que sonhamos para nós. Mas o que há de mais valoroso na vida, o que há de mais valoroso nessa dualidade eterna entre passado e futuro, é o que carregamos ao nosso lado dia e noite...
Gabriel Gama


Morar-se de mim
Viver é acolher-se no desconhecido. À deriva de controles, de passados e futuros. Tempo de assumir direções, ser regente do aqui e agora, ser piloto da própria existência. Nunca é tarde para ser o seu profundo ato de ser. Abra para tudo que vê, abra para tudo que sente, e pode os erros para não perder os podes da vida. Ame-te tal como é: este é o princípio da vida. Sem demasiar-se em idealismos, em modelos perfeitos de um universo perfeito...
Gabriel Gama


O amanhã
A gente espera o amanhã como se ele fosse chegar sempre. Eu digo este amanhã que não conhecemos. Não o amanhã descolorido das horas, aquele do café às sete, do ponto às oito, da pausa às uma, do café às quatro, do ponto às sete, do sono às dez. E se eu disser a você que esse amanhã que vos digo, fosse o que já é? E se eu disser a você que esse amanhã, avesso da ampulheta, fosse o já preciso presente? E se eu disser a você que esse amanhã é tudo o que já somos? Te prometo...
Gabriel Gama


Sábia espera
Ontem, fui à praia. Consultar-me aos orixás. Era meio de tarde. Sol a despedir-se. Quando cheguei, atendi aos pés. Urgentes por caminhos à deriva. Sobrepisando as margens, fui. Minutos à frente, sustei. Pousou sobre meus olhos um presente. Suspensa na areia, nascida do avesso do mar, como que brotada de lá mesmo. Por debaixo das camadas, uma tartaruga. Pequenina. Com as patas aterradas, parecia admirar o tempo, algum instante que antecedesse um outro instante já conhecido...
Gabriel Gama
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